Como a Nestlé está viciando crianças em açúcar em países de baixo rendimento

As duas principais marcas de alimentos para bebês que a Nestlé promove como saudáveis ​​e essenciais para o desenvolvimento das crianças em países de baixo e médio rendimento contêm elevados níveis de açúcar adicionado. Na Suíça, onde está sediada a Nestlé, esse tipo de produtos é vendido sem adição de açúcar. É o que revela uma nova investigação realizada pela Public Eye, em colaboração com a Rede Internacional em Defesa do Direito de Amamentar (IBFAN), que aponta a hipocrisia e o marketing enganoso do gigante agroalimentar suíço.

Meagan Adonis tinha 23 anos quando perdeu a visão por um grave problema de saúde. Nesse mesmo ano, soube que estava grávida e ficou preocupada com os desafios de ser mãe e cega na África do Sul. Desde então, ela se recuperou e recentemente deu à luz a seu segundo filho. Radicada em Joanesburgo, a “deusa cega”, como se apresenta nas redes sociais, partilha agora a sua experiência com os seus mais de 125 mil seguidores.

Em dezembro do ano  passado, Meagan Adonis postou vários vídeos no TikTok exaltando os méritos do cereal infantil Cerelac (chamado de Mucilon no Brasil) para bebês a partir dos seis meses. “Como você pode ver, tenho um bebê muito ativo”, explica. “Como mãe cega, a hora das refeições é sempre uma aventura […] Agora vamos preparar a refeição preferida do dia dela. Os corpinhos dos pequenos precisam de muito apoio e a Nestlé Cerelac é o complemento perfeito para as nossas refeições”, garante em tom alegre – omitindo, no entanto, indicar que esta recomendação materna é dada no âmbito de uma parceria remunerada com a Nestlé.

A vários milhares de quilómetros de distância, na Guatemala, um pai filma a sua enérgica filha. “Não há maior satisfação do que ver uma criança forte e saudável”, entusiasma-se Billy Saavedra, artista de reggaeton mais conhecido como Billy The Diamond. “É por isso que preferimos o Nido (chamado de Ninho no Brasil) 1+, que promove o desenvolvimento dos seus ossos e músculos, bem como do seu sistema imunitário”, explica num vídeo de promoção de leites em pó para crianças a partir de um ano da marca, publicado em março de 2023 em sua conta do Instagram, que tem mais de 550.000 seguidores.  

A utilização de influenciadores, como Meagan Adonis ou Billy Saavedra (e seus filhos), está no centro da estratégia de marketing da Nestlé para aumentar as vendas dos seus alimentos para bebês. Esta abordagem, que tem vindo a ganhar importância em vários setores, permite chegar a um público amplo, apostando num sentimento de identificação e proximidade. Na voz de pais que passam por experiências semelhantes, as mensagens publicitárias tornam-se conselhos carinhosos, ou seja, confiáveis.

Um mercado em crescimento

Cinquenta anos após o escândalo do leite em pó “Nestlé mata bebês”, a empresa afirma ter aprendido com o passado e proclama o seu “compromisso inabalável” com a “comercialização responsável” dos substitutos do leite materno.

Capa da edição em inglês do folheto “O mata bebês” © War on Want / Mike Muller

Capa da edição em inglês do folheto “O mata bebês” © War on Want / Mike Muller

O gigante agroalimentar está fazendo tudo o que pode para se afirmar como líder mundial em nutrição infantil, visando as diferentes fases dos primeiros anos de vida de uma criança. A empresa controla agora 20% do mercado de alimentos para bebês, avaliado em quase 70 bilhões de dólares (US).

A Cerelac (ou Mucilon) e a Nido (ou Ninho) estão entre as marcas de comida para bebê mais vendidas da Nestlé em países de baixo e médio rendimento. Vendas globais acumuladas totais nesta categoria são de mais de US$ 2,5 bilhões em 2022, segundo dados exclusivos obtidos pela Euromonitor, empresa de análise de mercado especializada na indústria alimentícia.

Em comunicação própria ou através de terceiros, a Nestlé promove a Cerelac e a Nido como marcas cujo objetivo é ajudar as crianças a “levar uma vida mais saudável”. Enriquecidos com vitaminas, minerais e outros micronutrientes essenciais, estes produtos são, segundo a multinacional, especialmente concebidos para satisfazer as necessidades dos bebês e crianças pequenas. Ajudariam a fortalecer o seu crescimento, o seu sistema imunitário e o seu desenvolvimento cognitivo.

Mas será que estes cereais infantis e leites em pó oferecem realmente “a melhor nutrição possível”, como afirma a Nestlé? Isto é o que a Public Eye e a Rede Internacional em Defesa do Direito de Amamentar (IBFAN) queriam verificar, concentrando-se num dos inimigos públicos número 1 em termos de nutrição: o açúcar.

 Um duplo padrão “injustificável” 

© Trevor Patt (CC BY-NC-SA 2.0 DEED)

© Trevor Patt (CC BY-NC-SA 2.0 DEED)

Alerta de spoiler: a nossa pesquisa mostra que, para a Nestlé, nem todos os bebês são iguais no que diz respeito ao açúcar adicionado. Na Suíça, onde a empresa está sediada, as principais marcas de cereais infantis e leites em pó vendidas pela gigante alimentar não contém açúcar adicionado, já a maioria dos produtos Cerelac e Nido comercializados em países de rendimentos mais baixos contém açúcar, muitas vezes em níveis elevados.

Por exemplo: na Suíça, a Nestlé promove os seus cereais “sabor biscoito” para bebês de seis meses com as palavras “sem adição de açúcar”; enquanto no Senegal ou na África do Sul, cereais Cerelac do mesmo sabor contêm 6 gramas de açúcar adicionado por porção.  

Na Suíça, os cereais infantis com sabor a biscoito da Nestlé não têm adição de açúcar. Na África do Sul ou no Senegal, os produtos Cerelac do mesmo sabor contêm mais de um quadrado de açúcar por porção. © Anne-Laure Lechat

Na Suíça, os cereais infantis com sabor a biscoito da Nestlé não têm adição de açúcar. Na África do Sul ou no Senegal, os produtos Cerelac do mesmo sabor contêm mais de um quadrado de açúcar por porção. © Anne-Laure Lechat

Na Alemanha, França e Reino Unido – os principais mercados da Nestlé em solo europeu – todos os leites de crescimento para crianças de um a três anos vendidos pela Nestlé também não contêm açúcar adicionado. E se determinados cereais destinados a crianças com mais de um ano o contiverem, os destinados a bebês a partir dos seis meses estão isentos.

Os cereais da marca Cerelac para bebês de seis meses, feitos a partir de farinha de trigo, que a Nestlé comercializa na Alemanha e no Reino Unido não têm, portanto, adição de açúcar, enquanto esse mesmo produto contém mais de 5 gramas por porção na Etiópia e 6 gramas na Tailândia.

“Esse duplo padrão é injustificável”, reage Nigel Rollins, cientista da Organização Mundial da Saúde (OMS). Para ele, o facto de a Nestlé não adicionar açúcar a estes produtos vendidos na Suíça, mas estar bastante disposta a fazê-lo em países onde os recursos são menores, é “problemático, tanto do ponto de vista ético como da saúde pública”. Rollins acredita que os fabricantes podem estar tentando acostumar as crianças a um determinado nível de açúcar desde muito cedo para que depois dêem preferência a produtos com alto teor de açúcar. “É totalmente inapropriado”, disse ele.  

O cereais infantis Cerelac com trigo são vendidos sem adição de açúcar na Alemanha e no Reino Unido. Em países de rendimento mais baixo, o mesmo produto contêm elevado teor de açúcar. © Anne-Laure Lechat

O cereais infantis Cerelac com trigo são vendidos sem adição de açúcar na Alemanha e no Reino Unido. Em países de rendimento mais baixo, o mesmo produto contêm elevado teor de açúcar. © Anne-Laure Lechat

Em busca dos açúcares escondidos

O teor de açúcar adicionado muitas vezes nem é divulgado nas informações nutricionais das embalagens desses tipos de produtos. Na maioria dos países, incluindo a Suíça, as empresas são apenas obrigadas a indicar a quantidade total de açúcares, o que inclui também os naturalmente presentes no leite ou nas frutas inteiras, que não são considerados como nocivos para a saúde.

Embora a Nestlé comunique prontamente as vitaminas, minerais e outros nutrientes contidos nos seus produtos, não demonstra a mesma transparência em relação ao açúcar adicionado. Para levantar o véu sobre estes “açúcares escondidos”, reunimos produtos Cerelac e Nido de vários países para examinar os seus rótulos e, alguns, testá-los num laboratório especializado.

Cereais infantis Cerelac (Mucilon) comercializados no Brasil, um dos principais mercados. O teor de açúcar adicionado não é declarado. © Anne-Laure Lechat

Cereais infantis Cerelac (Mucilon) comercializados no Brasil, um dos principais mercados. O teor de açúcar adicionado não é declarado. © Anne-Laure Lechat

No entanto, o assunto revelou-se mais complicado do que o esperado: vários laboratórios na Suíça recusaram-se a analisar os açúcares presentes nos produtos Nestlé. Um deles até escreveu que não poderia participar no projeto porque os resultados “poderiam ter um impacto negativo” nos clientes existentes. Perante estas recusas, recorremos a um laboratório sediado na Bélgica. E os resultados são reveladores.

Um quadrado de açúcar por porção

A Cerelac é o mercado número um de cereais infantis do mundo, com vendas superiores a um bilhão de dólares em 2022, de acordo com dados do Euromonitor. Examinamos 115 produtos vendidos nos principais mercados da Nestlé na África, Ásia e América Latina. Nada menos que 108 deles (94%) contêm adição de açúcar.

Para 67 desses produtos, conseguimos determinar a quantidade de açúcar adicionado. Em média, são quase quatro gramas por porção, ou cerca de uma colher de chá de açúcar. A maior quantidade – 7,3 gramas por porção – foi detectada em um produto vendido nas Filipinas e destinado a bebês de seis meses.

Na Índia, onde as vendas ultrapassaram 250 milhões de dólares em 2022, todos os cereais infantis Cerelac contêm açúcar adicionado – quase três gramas por porção, em média. Com quatro ou mais gramas de açúcar adicionado por porção, a situação na África do Sul, o principal mercado de produtos Cerelac no continente africano, é ainda mais preocupante. No Brasil, o segundo maior mercado do mundo, com vendas de cerca de US$ 150 milhões em 2022, três quartos dos cereais infantis da marca Cerelac (conhecidos como Mucilon no país) têm adição de açúcar, três gramas por porção em média.

Este produto vendido nas Filipinas e destinado a bebés de seis meses contém quase dois quadrados de açúcar por porção. © Anne-Laure Lechat

Este produto vendido nas Filipinas e destinado a bebés de seis meses contém quase dois quadrados de açúcar por porção. © Anne-Laure Lechat

“É extremamente preocupante”, disse Rodrigo Vianna, epidemiologista e professor do departamento de nutrição da Universidade Federal da Paraíba, no Brasil. “O açúcar não deve ser adicionado a alimentos destinados a bebês e crianças pequenas porque é desnecessário e altamente viciante. As crianças procurarão cada vez mais alimentos açucarados, iniciando um ciclo negativo que aumenta o risco de distúrbios alimentares na idade adulta, como a obesidade, bem como outras doenças crônicas como a diabetes ou a 'hipertensão'”, lamenta o especialista.

“Uma prática colonialista”

Embora menos acentuada, a tendência verifica-se com a marca Nido, a mais popular no  mercado de leite de crescimento. Em 2022, as suas vendas globais de produtos destinados a crianças de um a três anos ultrapassaram um bilhão de dólares, segundo dados do Euromonitor. Examinamos 29 produtos Nido comercializados pela Nestlé em alguns dos principais mercados de países de baixo e médio rendimento. Resultado: 21 deles (72%) contêm adição de açúcar.

Aqui, os produtos Nido examinados para esta pesquisa contêm em média quase 2 gramas de açúcar adicionado por porção. © Anne-Laure Lechat

Aqui, os produtos Nido examinados para esta pesquisa contêm em média quase 2 gramas de açúcar adicionado por porção. © Anne-Laure Lechat

Para 10 destes produtos conseguimos determinar a quantidade de açúcar adicionado. Em média, há quase dois gramas por porção. O valor máximo – 5,3 gramas por porção – foi detectado em um produto vendido no Panamá.

Com vendas de cerca de US$ 400 milhões em 2022, a Indonésia é o principal mercado global para Nido, conhecido localmente como Dancow. Ambos os produtos para crianças a partir de um ano vendidos no país contêm açúcar adicionado – mais de 0,7 gramas por porção.

A Nestlé não hesita em destacar o fato de estes produtos serem “isentos de sacarose”, embora contenham açúcar adicionado sob a forma de mel. No entanto, o mel e a sacarose são considerados pela OMS como açúcares que não devem ser adicionados aos alimentos para bebês. A Nestlé explica aliás, muito bem, num questionário educativo no site Nido na África do Sul: substituir a sacarose pelo mel não apresenta "nenhuma vantagem científica para a saúde", porque ambos podem contribuir "para o ganho de peso, ou mesmo para a obesidade".

No Brasil, segundo mercado mundial para Nido, a Nestlé afirma não adicionar açúcar a esses produtos por preocupação com a saúde e nutrição das crianças: “O ideal é evitar consumir esses ingredientes na infância, pois o sabor doce pode influenciar a preferência da criança por esse tipo de alimento no futuro”, alerta o gigante alimentar no site da marca no Brasil.

Loja coberta com produtos Nido em Manágua (Nicarágua). © Laurent Gaberell

Loja coberta com produtos Nido em Manágua (Nicarágua). © Laurent Gaberell

No entanto, na maioria dos países da América Central, onde a Nestlé promove agressivamente o Nido por meio de influenciadores, o leite em pó para crianças com um ano de idade contém mais de uma colher de chá de açúcar por porção. Na Nigéria, Senegal,  Bangladesh e África do Sul – onde Nido é uma das marcas mais populares – todos os produtos para crianças de um a três anos contêm açúcar adicionado. “Não compreendo por que os produtos vendidos na África do Sul deveriam ser diferentes dos vendidos nos países de rendimento mais elevado”, afirma Karen Hofman, professora de saúde pública na Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo, e pediatra qualificada. “É uma prática colonialista que não deve ser tolerada”, denuncia. “De um modo geral, não há boas razões para adicionar açúcar à comida para bebê”, insiste Hofman.

Primeiros anos decisivos

Este ponto de vista é partilhado pela OMS, que alerta há anos sobre o elevado teor de açúcar adicionado aos alimentos para bebês e os seus perigos a longo prazo. “Os resultados da sua pesquisa destacam a necessidade de ações urgentes para remodelar os ambientes alimentares das crianças”, disse o Dr. Francesco Branca, Diretor de Nutrição e Segurança Alimentar da OMS, ao Public Eye e à IBFAN. “Eliminar açúcares adicionados em produtos alimentares destinados a crianças pequenas é uma forma importante de prevenir a obesidade precocemente.”

A OMS alerta contra a progressão da obesidade, especialmente em países de baixo e médio rendimento, onde está atingindo “proporções epidêmicas” e provocando uma explosão de doenças crônicas, como doenças cardiovasculares, câncer e diabetes. O aumento do consumo de produtos ultraprocessados, muitas vezes ricos em açúcar, é apontado como uma das principais causas desta epidemia.

Os mais jovens não estão imunes a este flagelo: a obesidade infantil aumentou dez vezes nas últimas quatro décadas de acordo com a OMS, que estima que 39 milhões de crianças com menos de cinco anos têm excesso de peso ou são obesas. A grande maioria vive em países de baixo e médio rendimento.

“Os primeiros dois anos de vida de uma criança são particularmente importantes, pois a nutrição ideal durante este período reduz a morbilidade e a mortalidade, diminui o risco de doenças crônicas e promove um melhor desenvolvimento global,” insiste a agência da ONU. Em 2022, a OMS apelou à proibição de todos os açúcares adicionados, bem como adoçantes, nos alimentos para bebês e crianças com menos de três anos de idade. Instou a indústria a “ser proativa” e “apoiar os objetivos de saúde pública” reformulando os seus produtos.

Mas a Nestlé parece estar não estar levando a sério estes apelos. Se a multinacional recomenda publicamente evitar alimentos para bebês que contenham açúcar adicionado, estas palavras sábias não parecem aplicar-se aos países de baixo e médio rendimento, onde a Nestlé continua a adicionar conscientemente grandes quantidades de açúcar a alguns dos seus produtos mais populares.

Questionada pela Public Eye e pela IBFAN, a Nestlé não comentou sobre este duplo padrão. No entanto, a empresa afirma que "reduziu a quantidade total de açúcares adicionados em [seu] portfólio global de cereais infantis em 11%" na última década, e continuará a fazê-lo, "sem comprometer a qualidade, a segurança e o sabor". A Nestlé também afirma que está em processo de eliminação da sacarose e do xarope de glicose de seus leites de crescimento Nido. A multinacional acrescenta que seus produtos estão "em total conformidade" com o Codex Alimentarius e com as leis nacionais.

Regulamentações fracas

Embora seja contrária às diretrizes estabelecidas pela OMS, a adição de açúcar aos alimentos para bebês continua a ser permitida pelas leis nacionais da maioria dos países. Estas baseiam-se no Codex Alimentarius, um conjunto de normas internacionais desenvolvidas por uma comissão intergovernamental e coordenado conjuntamente pela FAO e OMS, com sede em Roma. O objetivo declarado: proteger a saúde do consumidor e garantir práticas justas no comércio destes produtos. Essas normas, que ganharam importância como referência em diversos mercados após a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC) em 1995, toleram adição de açúcar em alimentos para bebês em limites definidos para cada tipo de produto – até 20% em cereais infantis.

Sessão da Comissão do Codex Alimentarius em Roma. © FAO / Alessandra Benedetti

Sessão da Comissão do Codex Alimentarius em Roma. © FAO / Alessandra Benedetti

Estas normas do Codex para alimentos para bebês são, portanto, fortemente criticadas pela OMS, que as considera “inadequadas”, especialmente no açúcar, porque as crianças estabelecem as suas preferências alimentares cedo na vida. A agência da ONU pede que sejam revistas e alinhadas com as suas próprias diretivas, concentrando-se principalmente na proibição da adição de açúcar. As normas atuais não permitem determinar se a comercialização de um alimento é apropriada para bebês e crianças pequenas, segundo a OMS.

“As recomendações da OMS são independentes de qualquer influência da indústria”, disse Rollins ao Public Eye e à IBFAN. “No Codex, o lobby é muito importante: a indústria açucareira e a indústria de alimentos infantis estão sempre presentes nas salas onde as decisões são tomadas.” Porque se a Comissão do Codex for um órgão intergovernamental, os representantes da indústria podem participar como observadores, ou mesmo como membros de delegações nacionais. Numa revisão recente da norma para leites de crescimento, os lobistas da indústria representavam mais de 40% dos participantes. Para Rollins, esta é a principal razão pela qual as normas do Codex – e, por extensão, as leis nacionais – são mais fracas do que as diretrizes da OMS.

Práticas de marketing contestadas

A nossa investigação mostra que a Nestlé está comercializando agressivamente Nido e Cerelac em países de baixa e média rendimento, apesar do Código Internacional da OMS proibir a publicidade deste tipo de produto. Este Código, adotado em 1981 na sequência do escândalo “Nestlé mata bebês”, proíbe qualquer promoção de fórmulas infantis, a fim de proteger a amamentação. Esta proibição também se aplica a leites de crescimento, bem como a alimentos para bebês que, como a Cerelac, contêm “altos níveis de açúcar”. A Nestlé responde que está em conformidade com o código da OMS e com as resoluções subsequentes da Assembleia Mundial da Saúde, “conforme implementado pelos governos nacionais em todo o mundo”. A empresa acrescenta: "Quando a legislação local é menos rigorosa do que a nossa política de implementação do Código, nós aderimos à nossa política rigorosa". 

No entanto, a implementação do Código é geralmente fraca em países de baixo e médio rendimento, especialmente devido à pressão da indústria e dos países exportadores de alimentos para bebês. Ademais, a política da Nestlé não se aplica aos leites de crescimento para crianças com um ano de idade ou mais, nem a outros alimentos para bebês, que são, portanto, cobertos pelo Código. Além disso, a Nestlé promove seus produtos Cerelac e Nido como saudáveis ​​e ricos em nutrientes essenciais ao desenvolvimento das crianças – mesmo que contenham adição de açúcar. “As alegações nutricionais e de saúde dos fabricantes muitas vezes não são apoiadas pela ciência”, comenta Rollins, confrontado com os resultados de nossa pesquisa. “Se você quiser alegar que um produto farmacêutico melhora o desenvolvimento do cérebro dos bebês ou aumenta seu crescimento, você terá que obedecer a padrões de evidência muito elevados”, explica. “Mas como se trata de produtos alimentares, os fabricantes não têm de respeitar estas normas.”

Na África Central e Ocidental, a Nestlé está ativa no Facebook com uma página chamada “Nido Mães”.

Na África Central e Ocidental, a Nestlé está ativa no Facebook com uma página chamada “Nido Mães”.

As alegações nutricionais e de saúde “idealizam o produto, implicam que é melhor do que os alimentos convencionais e mascaram os riscos”, explica a OMS num relatório de 2022 que destaca as práticas de marketing abusivas dos fabricantes. Induzem os consumidores em erro, comprometendo assim “o progresso alcançado na alimentação ideal de bebês e crianças pequenas”. É por isso que não devem ser usados ​​para promover a alimentação infantil, segundo a agência da ONU. No entanto, a Nestlé fez delas o centro da sua estratégia de marketing para Cerelac e Nido.

«Crescer de forma inteligente»

“Crescer de forma inteligente”: o slogan é exibido em enormes outdoors no centro de Jacarta e nas principais cidades da Indonésia. Está no centro da campanha da Nestlé estabelecer Nido (Dancow) como “parceiro dos pais para o crescimento e desenvolvimento das crianças”. “Inspirado no amor da mãe” e especialmente formulado para “apoiar o sistema imunológico dos pequenos”, Dancow é “a escolha mais saudável”, aclama a Nestlé, ao mesmo tempo que se abstém de divulgar que os seus produtos contêm adição de açúcar.

“Crescer de forma inteligente”. Anúncio de produtos Nido (Dancow) no centro de Jacarta. Os dois produtos para crianças de um ano  contêm  açúcar adicionado. © Ibfan

“Crescer de forma inteligente”. Anúncio de produtos Nido (Dancow) no centro de Jacarta. Os dois produtos para crianças de um ano  contêm  açúcar adicionado. © Ibfan

No ano passado, a Nestlé lançou uma campanha para “apoiar o potencial das crianças com um ano ou mais de idade na Indonésia”. Neste contexto, o grupo conseguiu incentivar mais de dois milhões de mães a partilhar “momentos emocionantes” com os seus filhos nas redes sociais, tornando-se assim embaixadoras não remuneradas da marca. “Obrigado @dancow por apoiar o crescimento e desenvolvimento do meu filho”, escreveram.

A Nestlé aplica a mesma estratégia bem estabelecida no Brasil para promover os méritos dos cereais infantis da marca Cerelac (Mucilon). A campanha gira em torno do conceito de nutrição enriquecida pelo Mucilon e escolhida pelas mães”, diz Dani Ribeiro, diretora da agência que o projetou. Aproveita o amor dos pais pelos seus bebês para os incentivar a comprar esses produtos. Os pais “são nutridos pelo fato de estarem fazendo a escolha certa para seus filhos”, explica.

No Brasil, a Nestlé promove os cereais infantis Cerelac (Mucilon) como ricos em nutrientes  que contribuem para a imunidade das crianças e o desenvolvimento do cérebro.

Na África do Sul, é sob o tema “corpos pequenos precisam de grande ajuda” que a Nestlé promove a Cerelac como fonte de 12 vitaminas e minerais essenciais. “Há mais de 150 anos, gerações de pais confiam na Nestlé Cerelac para dar aos seus bebês tudo o que necessitam”, escreve a multinacional. Contudo, todos os produtos Cerelac vendidos neste país, que enfrenta uma verdadeira epidemia de obesidade, contêm altos níveis de açúcar adicionado.

Estas práticas são de grande preocupação para Chris Van Tulleken, professor da Universidade de Londres e autor do best-seller Ultra-Processed People, que explora a onipresença e o impacto dos alimentos ultraprocessados. “Esses produtos para bebês não são saudáveis ​​nem necessários. São inferiores aos alimentos reais”, acredita, “e fazem parte de uma transição global para uma dieta ultraprocessada associada ao ganho de peso e à obesidade, mas também a muitos outros efeitos nocivos à saúde”.

«Uma plataforma educativa»

A Nestlé foi pioneira no “marketing médico”, um conjunto de técnicas que continua a ser uma prática padrão na indústria atual, diz Phillip Baker, investigador da Universidade de Sydney, Austrália, e autor de numerosos estudos sobre o assunto. A estratégia: fortalecer vínculos com profissionais de saúde; buscar apoio de cientistas renomados; ao mesmo tempo que atua como um parceiro de confiança dos pais na nutrição e desenvolvimento dos seus filhos.

Se o objetivo principal é conquistar uma fatia maior do muito lucrativo mercado de alimentos para bebês, o “marketing médico” persegue outro objetivo essencial para a Nestlé: fidelizar o consumidor para toda a vida. Baker fala de uma “estratégia de marketing do berço ao túmulo” empregada pela gigante alimentícia suíça. “A ideia é atrair clientes desde cedo, fidelizá-los à marca e desenvolver as suas preferências gustativas pelos seus produtos”, explica o investigador.

A Nestlé criou “Baby and Me”, uma “plataforma educativa” disponível em mais de sessenta países, cujo objetivo declarado é promover uma alimentação saudável para os bebês e oferecer informação “validada por especialistas”. Os pais que procuram informações sobre nutrição infantil são direcionados para esta plataforma e expostos a conteúdos que os direcionam para os produtos Nestlé.

A Nestlé criou a plataforma educativa “Baby and Me”, cujo objetivo declarado é promover a alimentação saudável dos bebés e oferecer informação “validada por especialistas”. Mas a publicidade nunca está longe.

A Nestlé criou a plataforma educativa “Baby and Me”, cujo objetivo declarado é promover a alimentação saudável dos bebés e oferecer informação “validada por especialistas”. Mas a publicidade nunca está longe.

“Parenteam”, a versão filipina do programa oferece calendários de ovulação e gravidez, bem como uma calculadora de datas de vencimento. Na África do Sul, os pais podem descarregar uma “lista de verificação dos momentos importantes” para “vencer em todos os aspetos da parentalidade moderna”. No México existe um teste de alergia para bebês e, no Brasil, um guia para encontrar o primeiro nome perfeito. Esses sites estão cheios de dicas, ferramentas e receitas para os pais. Mas os anúncios de produtos Nestlé e os botões “compre agora” nunca estão longe.

Especialistas em jalecos brancos

A Nestlé organiza regularmente eventos ou entrevistas com profissionais de saúde nos canais online Nido e Cerelac. Embora na maioria das vezes os especialistas abordem temas relacionados à nutrição infantil e não promovam diretamente os produtos, as marcas Nido e Cerelac aparecem com destaque. O resultado: os pais são levados a acreditar que estes produtos são aprovados pelos principais cientistas e que as alegações de saúde e nutrição da Nestlé são cientificamente comprovadas.

Em alguns casos, os especialistas em jalecos brancos chegam a promover os produtos diretamente. “O sistema nutricional especializado do Nido foi projetado para proteger todas as fases do desenvolvimento do seu filho”, explica a nutricionista Kenia Lawrence, em um video postado no Instagram no Panamá. “Nido1+ ajuda a proteger e fortalecer o sistema imunológico, graças aos probióticos e prebióticos, e contém nutrientes essenciais para o desenvolvimento infantil.” Nem uma palavra, porém, sobre as 2 colheres de chá de açúcar adicionado em cada porção do produto em questão.

Para Baker, o recurso aos profissionais de saúde permite que as empresas controlem fortemente a tomada de decisões dos pais. Uma influência que “muitas vezes pode ser prejudicial”, acredita. Esta prática também vai contra as diretivas da OMS, que afirmam que os fabricantes não devem incentivar nem apoiar e recomendar as suas marcas e produtos. Em um relatório recente, a agência da ONU criticou duramente as práticas de marketing utilizadas pela indústria da alimentação infantil para promover os seus produtos online, apontando a utilização de diversas estratégias que muitas vezes não são identificáveis ​​como publicidade. Entre estes: a utilização de clubes de bebês, ou mesmo a utilização de profissionais de saúde ou influenciadores nas redes sociais, como Meagan Adonis e Billy Saavedra. A OMS tem apelado aos fabricantes para pôr fim a estas “práticas abusivas”.

Nada pode justificar o duplo padrão destacado pela investigação da Public Eye e da IBFAN. Se a Nestlé pretende realmente agir de forma responsável, tem de parar de tornar os bebês e as crianças pequenas viciados em açúcar, independentemente do país onde nasceram.

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A Public Eye se compromete a promover que as empresas suíças cumpram sua responsabilidade de respeitar os direitos humanos em todo o mundo. Relatórios como este só são possíveis graças ao apoio de nossos membros.
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Texto: Laurent Gaberell, Manuel Abebe, Patti Rundall
Tradução: Swisstranslate
Edição: Ana Paula Bortoletto Martins, Carla Hoinkes
Web design: Fabian Lang, Rebekka Köppel